sábado, 31 de maio de 2014

Sobre circo e religião

Neste ano de 2014, trabalhei na produção do 1 Festival de Circo de Taquaruçu um distrito da capital Palmas no Tocantins. O Festival surgiu da vontade de apresentar às crianças envolvidas nos projetos dos KaCo profissionais do circo, espetáculos, para que pudessem ter experiências diversas nesse mundo lúdico e ao mesmo tempo exigente e disciplinador que é o circo. Assim, Circo Os KaCo, Trupe Trip Trapo de Goiânia, o Grupo Boca do Lixo de Anápolis, Circo Laheto de Goiânia, Circo Inventado de Brasília, a Cia Itinerante Tem Sim Sinhô, Mutamba Criativa, Ponto de Cultura Canto das Artes, Ponto de Cultura Casa da Árvore se juntaram para realizar o 1Festival de Circo de Taquaruçu.
Assim o fizemos, ocupamos boa parte da cidadezinha de quase 5 mil habitantes com palhaços, malabaristas, acróbatas, carro de som anunciando pela cidade os espetáculos, as oficinas nas escolas, na Casa do Artesão, no Ponto de Cultura Canto das Artes... tudo lindo!!
Daí um dia, eu caminhando por Taquaruçu em companhia do Palhaço Chulé e da Nathalia Kaule, parei um senhorzinho para perguntar como chegar numa escola que ia ter atividade do Festival. Ele estava ali, sentado à sombra de um pequizeiro de esquina, defronte à uma igrejinha matriz e  ao lado de uma igreja Universal do Reino de Deus. O senhorzinho vendia abóboras kaputiá daquelas grandes bem alaranjadas.
Perguntei:

-O senhor sabe onde fica o Colégio Crispim?
e ele:
- Tá facinho é só seguir ali e virar a esquerda depois à direita. Logo no quebra mola chegou.
-Tá acho que entendi.Qualquer coisa pergunto. O senhor tá sabendo do Festival?
-Do circo?? Tô,tô vi uns malabaristas, um pessoal colorido por aí...
-O senhor gosta?
-Eu? Eu não, não a gente que é da igreja né, pode com essas coisas não.

Fiquei ali um pouco atônita, pensava em mil coisas para falar:


Fiquei pensando sobre essa cena e quanto mais pensei, menos respostas obtive. Resolvi buscar no livro Respeitável Público: o circo em cena, a Ermínia Silva diz que "A relação que o circo-família estabelecia com a Igreja Católica mostra que, apesar de os circenses não se circunscreverem a agrupamentos com características religiosas, raciais ou quaisquer outras, eram seguidores dos rituais da religião oficial do Brasil, naquele período. Procuravam sempre demonstrar que eram “comportados”, iguais aos “bons cidadãos” no sentido de “aplacar” a “ira” dos padres frente “a esses artistas sem família e sem moral”. Se, ao falarem de sua “adesão” à Igreja Católica evidenciam uma relação tensa, que não permite, inclusive, expressarem abertamente a possibilidade de usarem “de expedientes” para serem aceitos".

A cidade de Taquaruçu, ao meu ver, tem uma grande quantidade de igrejas neopentecostais. O que não me surpreende na fala daquele senhor é a associação entre circo/profano e igreja / sagrado que ele colocou em  de tal forma que circo e igreja tornaram-se excludentes e incompatíveis.
Fiquei tão instigada com o tema que fui atrás da Alice Viveiros de Castro, em seu Elogio da Bobagem e encontrei narrativas interessantes sobre essa relação circo/ igreja na página 36:

"A Europa dos primeiros séculos da Idade Média não era o melhor palco para nenhum artista. Mas, pouco
a pouco, a própria Igreja vai incentivar a realização de autos e Mistérios, espetáculos que contavam a vida
de Cristo e dos santos, teatralizavam a Paixão, a vida dos Santos e passavam ensinamentos moralizantes.
No início, eram pequenas cenas representadas dentro das igrejas. Mas a coisa foi crescendo, tomou as ruas e, ao final, envolvia toda a cidade."

Já na página 90, a autora avança na linha histórica e nos demonstra que:

"As Artes Circenses chegaram ao Brasil com as caravelas. Os portugueses gostavam muito de comédias,
especialmente de arremedilhos e momos, espetáculos que mesclavam canto, dança e pantomima e que
tinham no humor dos graciosos o centro e sua estrutura dramática. [...] As Artes Circenses chegaram ao Brasil com as caravelas. Os portugueses gostavam muito de comédias, especialmente de arremedilhos e momos, espetáculos que mesclavam canto, dança e pantomima e que tinham no humor dos graciosos o centro e sua estrutura dramática."

Por fim, na página 117 Castro esclarece:
"Gente de circo sempre foi solidária e participativa. Viajando de cidade em cidade, procuram integrar-se
às comunidades visitadas criando laços e amizades. Tradicionalmente participam de inúmeros espetáculos
beneficentes com renda para ajudar na construção de hospitais, creches, reformas de igrejas e cedem
milhares de ingressos gratuitos a escolas, orfanatos e projetos sociais.

Essa relação do circo com o profano instiga várias reflexões sobre o fazer humano fora da igreja.







quarta-feira, 19 de março de 2014

A Retomada

Eu precisando escrever, esbocei vários escritos cuja coragem da postagem me faltou. "Vi demônios e anjos transando no infinito, me encontrei no meio de gritos e risos", como dizem os versos de Fabrício Fal me apresentados pela Flávia Carolina, cantora em Goiânia (https://www.youtube.com/watch?v=3R-fzgf1cpI). Sobre minha viagem de cartas devo algumas palavras, ainda não consegui concretizar a performance que quero fazer a partir desta pesquisa. Neste momento muitos projetos me impossibilitam de realizar essa performance em especial, mas a pesquisa não pára. Uma mente perturbada de ideias como a minha precisa de espaço para expressar outras coisas crônicas, poemas, letras de músicas, encontros variados que valem o registro.
Em busca de uma de "Etnografia em Prosa" nada melhor do que retomar os escritos e reflexões sobre o mundo mesclando lirismos com doses de realidade. Quero compartilhar em breve a minha Odisséia Caipira, obra cuja construção trabalho aos poucos em parceria com amigos da música, do teatro, do circo e demais artes... Mas isso deixarei para outra postagem. neste momento quero registrar apenas a retomada dos escritos neste espaço que criei para desenvolver essa narrativa fragmentada e aos poucos. 





domingo, 12 de maio de 2013

terça-feira, 7 de maio de 2013

Carta X

Encontrei essa carta no blog dos Escritores indígenas e reproduzo aqui para vocês:


Uma carta para refletir


Em janeiro de 2008, escrevi pela primeira vez sobre minha queridíssima sobrinha Ana, minha terceira "filha" que, com especialização em educação indígena, aos 23 anos, mudou-se para Roraima para trabalhar com os Yanomami. Dividiria seu tempo entre Boa Vista e a floresta, onde viveu e vive as mais ricas experiências.
Nesta semana, recebi uma carta sua e, emocionada, vou reparti-la com vocês. Não é uma carta qualquer, pois, na simplicidade de suas palavras, encontrei uma verdadeira lição de vida, de dedicação, amor e desapego. Leiam devagarzinho, com atenção, pois ela merece ser lida com a alma.

"Querida família,
Hoje está fazendo três anos que cheguei aqui. Em uma tarde fria de 28 de agosto, peguei o avião de BH para o Norte e cheguei a Boa Vista com o coração apertado e um certo medo de não saber o que me esperava, sem saber viver fora de um ambiente protegido e rodeado por gente querida. Apesar de já ter morado na Itália e na Nova Zelândia, encontrei muito apoio por lá.

Hoje, depois de ter passado muito aperto, ter aprendido muita coisa sozinha, ter os momentos de choro, de solidão e de belas surpresas, sigo tranquila, sem a ansiedade que me acompanhou por tantos anos. É como se eu tivesse encontrado mesmo meu lugar. Estou feliz fazendo o que eu faço! Encontrei aqui também a pessoa que amo e que escolhi para compartilhar a vida, como a vovó tinha previsto.

Agora, moro na beira do rio Branco, em uma casinha muito legal. Aprendi a me comunicar bem em duas línguas Yanomami, tomar atitudes com mais segurança, cozinhar no fogão e na fogueira, tirar bicho de pé, estou conhecendo o universo riquíssimo Yanomami -que, muitas vezes, é desconhecido e desvalorizado, aprendi a usar a máquina de lavar roupas e a lavar roupa no rio, comprar peixe, ouvir mais as pessoas, dormir na rede por mais de um mês, ficar sem comunicação sem me desesperar, me virar quando só tenho eu mesma para cuidar de mim. 

Aprendi a andar um pouco de wind surf no rio, a dividir os espaços, a ver que a minha opinião nem sempre é a certa e que as minhas vontades não são as maiores prioridades no mundo. Estou sempre aprendendo que existem muitos mal-entendidos entre índios e brancos, aprendi a dar aulas para índios, aprendi que, se não tem carne, as pessoas se viram para tirar proteínas de onde for, aprendi que os Yanomami têm um conhecimento etnobotânico e zoológico riquíssimo. Aprendi que trabalhar de verdade e com carteira assinada é dureza! (e nada de escapar para a praia!), aprendi que existe muito mais gente malandra do que imaginava, aprendi a ter um pouco mais de autoconfiança e que, às vezes, não podemos confiar nas pessoas tanto assim. Aprendo sempre que os índios têm muito a nos ensinar e precisamos escutá-los com cuidado. 

Aprendi que miçangas da República Checa são bonitas e podem ser trocadas por macaxeiras, caranguejos e deliciosos cogumelos na floresta, aprendi que não conhecemos a diversidade que existe dentro do nosso Brasil, aprendi que tem pouquíssimo interesse geral em preservar as florestas, aprendi que a casa não fica limpa sozinha e que não precisamos ser tão neuróticos com os germes que existem, que os bichinhos da floresta têm uma carne gostosa e que, às vezes, pode ser estranho comer animais criados. 
Aprendi que dá para viver bem sem carro e que na vida tem muitas coisas mais importantes do que ter um armário cheio e a programação do cinema em dia. 
Aprendi a fazer pão de quijo estando fora de Minas, aprendi que Roraima tem muito político sujo e paisagens lindas. Desaprendi a ter medo de andar à noite sozinha, aprendi a lidar com a saudade do cinema e dos shows, aprendi que é preciso lembrar de trancar a casa antes de dormir, que é preciso viver com delicadeza e cuidado, que é preciso cuidar de mim e das relações.

Ainda não aprendi a viver sem saudade da família, dos amigos, dos lugares e das pessoas que me fizeram ser quem eu sou, que sabem me ouvir e com quem precisamos apenas de meias palavras para nos fazer entender.
Cheguei aqui com 23 anos; hoje tenho 26. 

Meu cabelo está maior, alguns fios brancos precoces, o corpo mais magro e mais sardas no nariz por culpa do sol escaldante. Sinto que tenho um corpo e uma mente mais firmes para segurar os trancos e os "esfrias e esquentas" que é a vida.

Hoje, eu não aprendi, mas apenas sinto que estou feliz depois de tanta maré brava... Mas ainda tem muitas outras para enfrentar!
Ui, chega de devaneios neste sábado vagaroso de chuva...
kua hikia!
Beijos,
Ana".


PS.: A quem interessar, escrevi duas crônicas sobre a experiência de minha sobrinha Ana entre os Yanomami que podem ser encontradas no site: www.otempo.com.br. Do lado direito da tela, localizar o item "colunas" - Laura Medioli. Ao fim da crônica que aparecerá no visor, localizar o item "outras edições". Datas de publicação: 8 de janeiro de 2008 (Ana) e 15 de setembro de 2009 (Onde a felicidade se encontra).

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Xipat Oboré (Tudo de Bom!)
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Daniel Munduruku
www.danielmunduruku.com.br
www.danielmunduruku.blogspot.com

Carta disponível em: http://escritoresindigenas.blogspot.com.br/

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Cartas XI

Carta redigida por Edson Baikari e assinada por diversas lideranças indígenas do país, em nome do Movimento Contra o Infanticídio Indígena.


terça-feira, 12 de março de 2013

sexta-feira, 8 de março de 2013